quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Canção de um Bongun

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- N-não! Por favor não!
O mago implorava por misericórdia. Lágrimas de desespero enchiam sua cara. Mas não tinha escolha.
- Farei sem dor. - disse, baixinho, incerto se ouvira ou não. Era o mínimo que podia fazer pelo pobre aventureiro.
Com as unhas extremamente afiadas, abri um buraco no peito esquerdo dele, destruindo o coração por completo, antes mesmo que começasse a sangrar. Uma morte rápida, quem sabe indolor, como lhe havia prometido. A mão direita sentia o vermelho líquido escorregar e gotear, aos poucos. Algumas raposas douradas, conhecidas vulgarmente como Nove Caudas, surgiam atraídos pelo cheiro de sangue, saboreando os últimos restos do ser caído no chão; ser que, muitos anos atrás, já fui parte deles.
- Odeio essa vida. - murmurei a si mesmo, embora tecnicamente não estava vivo. Sentia, pela n-ésima vez, vontade de rasgar o Amuleto na testa.


Éramos tão felizes. Você vivia a poucos minutos de minha casa. Lembrava, inclusive, de quando nos conhecemos. Enquanto sua mãe lhe introduzia à minha família, você escondia-se atrás dela. Sem motivo, dei um sorriso, e você me devolveu outro. E tudo começou.
Brincávamos juntos, estudávamos juntos, íamos ao templo juntos. Eu brigava por ti, e você cuidava de meus ferimentos. Quando fugia de casa, eu era sempre a pessoa quem te achava primeiro. Eu tocava o Gumoongoh que seu pai lhe dera de presente, após uma de suas viagens, e você cantava. E como cantava! Fazia brincadeiras comigo porque aquele instrumento musical era feito pra mulheres, lembra? Mesmo assim, sempre me pedia para tocá-lo, de novo.
Se não acontecesse aquela tragédia, aquele dia... o dia em que perdi minha família, meus amigos. O dia em que perdi você.


Cá estou eu, sentado num canto da cidade esquecido pelo tempo, lugar cheio de lembranças, bons e ruins. O radiante sol e o esplêndido céu azul nos abandonara. As grandiosas construções não mais apresentavam a forma como as conhecíamos. O lugar, agora tristemente amaldiçoado, foi inteiramente selado no mais profundo andar de uma caverna. Ouvira um companheiro meu comentar que, recentemente, reconstruíram um vilarejo com o mesmo e familiar nome, do lado de fora. Que Buddha ou qualquer deus estrangeiro dos ocidentais lhes abençoem, que não tenham que enfrentar o mesmo destino que passamos, um dia.


- Pobre e frágil mortal. Quem não pôde partir para Valhala pela morte não gloriosa, e nem para Niflheim, pois nem mesmo Hel te aceitara como um novo cidadão da terra dos mortos. Sinto sua enorme tristeza e o desejo não realizado.
Ouvia alguma voz feminina sussurrar para mim. Abri os olhos. Era uma pequena garota, nua, com parte de seu corpo coberto por pêlos dourados. Pêlos de Nove Caudas. Carregava um enorme sino igualmente dourado. Uma de suas mãos acariciava o rosto de alguma coisa caído no chão, corpo que, poucos atrás, servia como recipiente de minha alma. Mas seus olhos fixavam no lugar onde eu estava. Da outra mão, tirou um Amuleto.
- Isto, é um talismã proscrito que traz a vida aos mortos. Diferente do que vocês, humanos, pensam, isto não cria um corpo sem-alma ambulante. Ele lhe dará uma segunda oportunidade de vida, mas como um morto-vivo, um monstro, uma besta, embora pensante. Terás uma pós-vida árdua e amaldiçoada, mãos sujas de sangue, queira ou não. Mas, se der sorte, poderia realizar seu último desejo pendente, e finalmente descansar em paz. E agora, mortal. Interessado?


Muitos outros companheiros passavam ao lado, mas quase ninguém apresentava vontade de conversar. Todos eles, sim, todos, são semelhantes meus, embora por motivos distintos. Alguns aceitaram por medo da morte, outros porque queriam ver pela última vez a cara de conhecidos, amados... No meu caso...
Do bolso da vestimenta azulada, apanhei um Retrato Velho, que desenhei, eras atrás. Retrato de uma menina, muito bonita. Seu rosto já estava borrado, pois o pergaminho estava muito gasto, tanto pelo tempo como por lágrimas.
No meu caso... foi o amor não realizado.


Lembra da sua festa de aniversário de 16 anos? Seus pais celebravam a filha, finalmente adulta, idade para casar e formar sua nova família. Inúmeros pretendentes apareciam, atraídos por sua incomparável beleza e pureza. Mas não pude participar dessa disputa. Não era tão rico, e nem tão habilidoso, como todos esses homens.
Não. O que faltara não eram riquezas nem habilidades. Era coragem. Tinha medo. Medo de ser recusado. Medo de que, uma declaração minha destruiria essa amizade de mais de 10 anos.

Observei mais alguns Munaks que passavam por perto, com mínimas esperanças de achar o querido rosto da mulher que tanto amava. Um Dokebi ria, ridicularizando meu triste e inútil ato. Já não tinha forças para brigar com ele.
Sabia que era pedir demais reencontrá-la. Mas, pelo menos, queria saber o que você quis me dizer, naquela noite supostamente calma, naquele silêncio antes da tempestade. Queria saber o que você pensava. Isso e mais algumas recordações formam os poucos alicerces que ainda me sustentam.


Naquele dia, você me convidou para passear, pela região inofensiva da floresta, à noite. Disse que tinha algo importante para falar. Lembro até hoje suas lindas e um tanto engraçadas bochechas coradas. Mas...
Mas... antes mesmo de você abrir a boca, o apocalipse escolheu nosso querido lar como próximo alvo. Jamais conseguirei esquecer o vermelho e brilhante fogo que cobria toda nossa cidade natal; a cabeça decapitada do irmãozinho, a mãe banhada em sangue. Você foi buscar seus pais, mas nunca mais voltou. Nunca...


Pequenas e delicadas mãos tocavam meu ombro. Uma singela noviça em torno de 10 anos me olhava. Não demonstrava medo ou ódio como qualquer outra pessoa que enfrentara até hoje. Fiz uma cara horrorosa e mostrei as monstruosas unhas, tentando intimidá-la, espantá-la desse lugar. Não queria matá-la. Já tirei a vida de pessoas demais, nesse dia. Mas não se assustou. Continuava dando toques no meu ombro. Seus grandes e inocentes olhos pretos pareciam querer me dizer algo.
Sem motivo, a levei para um canto vazio, onde nenhuma criatura a atacaria, onde estaria segura. Pelo menos por enquanto. Era um ato estranho, sem precedentes.
A noviça apanhou algo de sua mochila. Um velho livro azul, que me chamara a atenção. Peguei-o e abri a primeira página. Tão logo olhara para as primeiras linhas, não pude conter as lágrimas. Eram letras pequenas e redondinhas, letras tão familiares, de alguém que nunca a esqueceria. Querida, era teu diário.
As notas e registros tinham datas irregulares, mostrando claramente seu caráter um tanto preguiçosa, mas graciosa. O próximo texto poderia datar a um dia, ou um mês. Mas todos eles tinham algo em comum. Todos tinham meu nome escrito neles.
Nunca soube que você me observava tantas vezes, em tantas ocasiões diferentes, dessa maneira especial. Lia rapidamente até chegar, ansiosamente, no último registro.
“... Hoje, decidi declarar meu amor por ele, e que já deveria tê-lo feito há mais de 10 anos. Mamãe ficaria tão brava por essa atitude não feminina. Mas sei que ela me entenderia. Será que ele me aceitaria como sua esposa? Quero estudar história ao seu lado. Quero visitar o templo ao seu lado. Quero que ele toque nossas cantigas com o Gumoongoh somente para mim. Quero cantar somente para ele ouvir. Quero acompanhá-lo pelo resto da vida. Quero...”
Não consegui terminar a leitura. Minha visão já estava borrada demais. Lágrimas enchiam minha cara toda. Por mais que esfregue, mais úmidos ficavam meus olhos. A pequena noviça me abraçava, mas não a empurrei para o lado.
- Posso ficar com ele? - perguntei, mais tarde. Ela concordou baixando a cabecinha. - Obrigado... muito obrigado...


Pois é, querida. Desculpe-me, mas terá que me esperar mais um pouquinho. Agora, viajo com aquela noviça, por todo Rune-Midgard, conhecendo lugares e coisas nunca antes imagináveis. Prometi, a si mesmo, que a irei acompanhá-la e protegê-la, como minha própria forma de agradecimento, pelo menos até achar o lugar onde ela pertence. E eu sei que você concordaria comigo, não? Afinal, ela conseguiu transmitir uma importante mensagem perdida há tantos séculos.
Durante essas viagens, aproveito para saber onde estás, seja no céu que conhecíamos, ou naquele dos distintos ocidentais. Lhe darei minha resposta quando a reencontrar, e sei que ficará feliz por isso. Lhe contarei as aventuras e tudo que era desconhecido por nós. Ali, poderíamos criar, novamente, nossas próprias cantigas.
Espere-me, querida. Já venho.
Fim
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